sábado, 5 de março de 2011
O fenecer de uma tulipa
Há, aqui a meu lado, uma tulipa que fenece.
Fenece esta tulipa e curva-se em minha direção
desde o dia em que,
não sei por qual sentimento,
ofertaram-me tulipas de presente.
Comove-me por demais este ir-se,
esta partida que,
sem dúvida derradeiro alento em enleios
e alentos tantos,
amarela-se como a transformar-se
por invertido amanhecer em sol que morre
enquanto sinto vontade de derramar lágrimas
que desejaria brancas,
tão súbita tulipa também que estou.
Mais que tão só comover-me,
parece, sentindo-me,
sentir e tomar-me pelas mãos, pois me levanto,
e levar-me à saudade,
saudade de todas as infinitas tulipas
que através dela vejo fenecerem
tanto que se doura esta despedida
que a meu lado se deita.
Sim, tanto se deita,
curva-se a comover-me,
que passo a dirigir-me a ti,
de pé, a teu lado.
E, mais que apelo,
também se chamam súplica
as mãos tantas que te trago,
que de carinho e de prece
muito te tocam
como se te dissessem,
melhor, implorassem que não partas,
que não te percebas sozinha qual o mais que sou,
que, se não puderes de nenhum modo evitar,
apenas te tornes sombra de beleza
erguida por sobre os campos.
Não partas, bela tulipa,
peço-te com humildade e sofreguidão
porque não sei o que será,
na ausência de ti,
de minha aflita poesia,
ainda há pouco aguda como amores de carnes,
senão mar aberto sem velas,
sem naus.
Rebela-te e, se preciso for, torna-te maldita
qual o que igualmente anseio ser
e não cumpre teu inevitável destino,
este apodrecer.
Outras tulipas existem porque te olho
e o que vejo não pode, bem o sei, cessar de ser.
Se tulipas já há,
tu não sabes
o que neste instante te confesso:
foi tua branca boca de fome e de sede
a que me surpreendeu no tempo impreciso e me viu,
antes deitado sob a lua que eu mesmo me trouxe,
a banhar-me de alquimia,
ouro transmudado em prata,
a deixar-me todo serenar,
pele apoiada por sobre ossos,
sem depois importar-me com os só ventos,
alva gaze, livre, transparente, solta, à noite, a voar.
Também foste tu, testemunha pálida,
por encantamento quiçá, quem,
retendo prolongado raio de sol
e sutilezas de desmaios de tons de gramas,
iluminou e fez brotar um poema
que na alma guardei.
Guardei-o como lua,
que agora, prateado, derramo-te.
Choro-o,
todo e de imediato,
em canto quebrado
porque eternamente úmidas, de súbito,
pareceram-me minhas feridas,
com minhas mãos carpideiras
coladas às minhas têmporas abandonadas em já algum grisalho,
branco que te copia,
e como se para cantá-lo necessitasse encostar-me
em esquinas, arestas,
outros cantos também quebrados,
dolentes por ver-te partir.
Dor maior porque dor adagio,
ainda assim te contemplo,
mais belo que és,
triste reverente,
curvado em minha direção.
Não partas, tulipa,
porque outras não me serão;
outras não te serão.
Foste aquela que, só chegando,
mais chegou e neste chegar fez-se a poesia.
Indo-te, és aquela que fica sem mais estar
e a saudade rasga o poema, deixa rimas tantas
qual soluços e palavras mortas,
alquebradas no ar.
Poesia há, eu sei, até na generosidade de teu morrer,
mas é perdida e já tanto vislumbro,
de desertos oceanos, os ventos vazios.
Não partas,
sei que em vão te suplico,
mas insisto, não amareleças
porque tanto te gosto mais vermelha
e a ti não deveriam causar tristeza tanta
as festivas poucas tulipas que ganhei,
se também razão for esta.
Tu me sabes aqui, de pé,
qual te anseio por querer que de mim
tanto precises
quanto de ti mais precisei
mesmo quando parecia não te notar
simplesmente por mais saber-te grito de noturna alvura
que, de dia, me ensinava a domar palavras,
dando-lhes só o peso dos pensamentos diurnos.
Também,
porque sempre mais vermelha que tua nesga rubra,
imaginava-te afogando o sol dentro da lua ao meio-dia.
Se agora passo a impressão de diferente
daquele por ti testemunhado
que se banhou de luar,
é porque, por perda de brilho, nada fico
além de mero cinza,
o mais que lapso de tristeza da prata
que te vê partir.
Encabula-me esta tua reverência,
flor querida,
porque a não mereço,
porque,
malgrado alegrias minhas tantas a teu lado,
neste momento odeio
a mão que teu milagre abreviou.
Não a mereço, de fato, e não te consigo erguer,
mas cederia, de coração, a chance
de todos os poemas tantos que me provocaste se,
mais que alhures,
lá onde eu nunca te soubesse, soubesse de ti menos breve.
Não pensaria, em minhas horas,
em cantar estrelas ou seios desnudos e, nas tuas,
neste agora em que nada te posso oferecer,
no que trazes de semelhante a mim,
ocupado que talvez estaria só por não pensar o que,
sem dúvida,
não me passaria pela imaginação:
minhas mãos
por sobre teus hipotéticos olhos cansados
em tua real hora derradeira.
Não tenho almofadas
porque não sei onde apoias a tua cabeça.
Tenho só as mãos, como talvez saibas,
mas estão suadas,
suadas...
Trago-as até meu rosto,
logo abaixo de meus olhos,
mas, de pronto, porque me parece
que me sorris um sorriso triste,
tímido como aqueles de crianças doentes
nas quais morrem não as almas que não têm
mas os jardins,
deixo-as cair.
De fato, na forma com a qual tentei
apoiar meus olhos de pranto,
dei a elas uma forma de tubérculos,
tulipas que não são as minhas mãos.
Eu peço-te perdão, tulipa,
por tanto pedir-te,
por assim me gritarem os poemas, o coração,
as tolas rimas e as canções
o que tu não podes evitar.
Perdão pelo que me deste quando
tanto mais ainda te tirei e perdão, também,
por logo, dentro de tão breve,
precisar levar-te para longe de mim,
usando mãos suadas que não são diferentes
daquelas que um dia, há pouco, por ti passaram
sem se esquecerem de tocar-te.
Outras tulipas não me serão, porém;
outras também não te serão, mãos.
E te levarei ao campo,
carregando-te como se carrega
um querido infante que dorme,
deitando-te à sombra mais amena que encontrar.
Deixarei tua outrora branca boca de fome e de sede
voltada para o lado que mais te orvalhar.
Saberei assim e sempre de ti a cada vez que, molhada,
a terra exalar os tantos aromas íntimos teus
porque, passada a chuva,
nuvens serão mais uma vez vermelhas
com, aqui e acolá, qual teu coração roto por doçura tanta,
rubras nesgas ensolaradas.
Tonny Martin
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